70 anos após
fim da guerra, estupro coletivo de alemãs ainda é episódio pouco conhecido
Lucy Ash Da BBC News, Berlim, 8 Mai
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Mas existe um
lado sombrio e pouco conhecido nessa história: os estupros em massa cometidos
no final da guerra por soldados soviéticos contra mulheres alemãs.
Alguns
leitores poderão achar esta história perturbadora.
O sol se põe sobre o Treptower Park, nos arredores de
Berlim, e eu observo uma estátua que faz um desenho dramático contra o
horizonte. Com 12 metros de altura, ela mostra um soldado soviético segurando
uma espada numa mão e uma menina alemã na outra, pisando sobre uma suástica
quebrada.
A estátua marca um lugar onde estão enterrados 5 mil dos
80 mil soldados do Exército Vermelho mortos na Batalha por Berlim entre 16 de
abril e 2 de maio de 1945.
A proporção colossal do monumento reflete o sacrifício
destes soldados. No entanto, para alguns, a estátua poderia ser chamada de
Túmulo do Estuprador Desconhecido.
Existem registros de que os soldados de Stálin atacaram
um número bastante alto de mulheres na Alemanha e, em particular, na capital
alemã, mas isto era raramente mencionado no país depois da guerra e o assunto
ainda é tabu na Rússia de hoje.
A imprensa russa rejeita o tema regularmente e diz
tratar-se de um "mito espalhado pelo Ocidente".
Uma das muitas fontes de informação sobre estes estupros
é o diário mantido por um jovem oficial soviético judeu, Vladimir Gelfand, um
tenente vindo da região central da Ucrânia, que, de 1941 ao fim da Guerra, pôs
no papel seus relatos, apesar de os soviéticos terem proibido diários de
militares.
Em fevereiro de 1945, Gelfand estava perto da
represa do rio Oder, preparando-se para a entrada em Berlim. Em seu diário, ele
descreve como seus camaradas cercaram e dominaram um batalhão de mulheres
militares.
"As alemãs capturadas disseram que estavam
vingando seus maridos mortos. Elas devem ser destruídas sem piedade. Nossos
soldados sugeriram esfaqueamento das genitais, mas eu apenas as
executaria", escreveu.
Uma das passagens mais reveladoras do diário de
Gelfand é a do dia 25 de abril, quando ele narra a chegada a Berlim. Ele estava
andando de bicicleta perto do rio Spree, a primeira vez que andou de bicicleta,
quando cruzou com um grupo de mulheres alemãs carregando malas e pacotes. Em
seu alemão ruim, ele perguntou para onde estavam indo e a razão de terem saído
de casa.
"Com horror em seus rostos, elas me
disseram o que tinha acontecido na primeira noite da chegada do Exército
Vermelho", escreveu.
"'Eles cutucaram aqui a noite toda',
explicou a bela garota alemã, levantando a saia. 'Eles eram velhos, alguns
estavam cobertos de espinhas e todos eles montaram em mim e me cutucaram – não
menos do que 20 homens'. Ela começou a chorar."
"'Eles estupraram minha filha na minha
frente e eles ainda podem voltar e estuprá-la de novo', disse a pobre mãe. Este
pensamento deixou todas aterrorizadas.""
"'Fique aqui', a garota, de repente, se
atirou em cima de mim, 'durma comigo! Você pode fazer o que quiser comigo, mas só
você!"'
Àquela altura, já se sabia de horrores cometidos
por soldados alemães na invasão da União Soviética. O próprio Gelfand tinha
ouvido essas histórias.
"Ele passou por tantos vilarejos nos quais
os nazistas tinham matado todos, mesmo crianças pequenas. E ele viu provas de
estupro", disse o filho do soldado, Vitaly Gelfand.
As Forças Armadas alemãs estavam longe da imagem
de força disciplinada "ariana" que não se interessaria em ter
relações sexuais com Untermenschen (povos inferiores, em alemão).
Tanto que, segundo Oleg Budnitsky, historiador
da Escola Superior de Economia de Moscou, os comandantes nazistas, preocupados
com o alto número de doenças venéreas entre seus soldados, estabeleceram uma
cadeia de bordéis militares nos territórios ocupados.
É difícil encontrar provas de como os soldados
alemães tratavam as mulheres russas, muitas vítimas não sobreviveram. Mas no
Museu Alemão-Russo de Berlim, o diretor, Jorg Morre, mostra uma foto feita na
Crimeia, parte do álbum pessoal de um soldado alemão, feito durante a guerra.
"Parece que ela foi morta no estupro ou
após o estupro. A saia está puxada para cima e as mãos estão na frente do
rosto. É uma foto chocante. Tivemos discussões no museu sobre se deveríamos
mostras as fotos – isto é guerra, isto é violência sexual sob a política alemã
na União Soviética. Estamos mostrando a guerra. Não falando sobre, mas
mostrando", disse.
Enquanto o Exército Vermelho avançava, cartazes
estimulavam os soldados soviéticos a mostrarem sua raiva: "Soldado: Você
agora está em solo alemão. A hora da vingança chegou!".
Enquanto pesquisava para o livro que lançou em
2002 sobre a queda de Berlim, o historiador Antony Beevor encontrou, no arquivo
estatal da Federação Russa, documentos que detalham a violência sexual. Eles tinham
sido enviados pela então polícia secreta, a NKVD, para o chefe desta polícia,
Lavrentiy Beria, no final de 1944.
"Eles foram passados para Stálin. Você pode
até ver se eles foram lidos ou não – e eles relatam estupros em massa no leste
da Prússia e a forma como as mulheres alemãs tentavam matar os filhos e se
matar, para evitar os estupros", disse.
Outro diário escrito durante a guerra, deste vez
o da noiva de um soldado alemão ausente, mostra que algumas mulheres se
adaptaram a estas circunstâncias horríveis para tentar sobreviver.
O diário, anônimo, começou a ser escrito no dia
20 de abril de 1945, dez dias antes do suicídio de Hitler. Como no diário de
Gelfand, a honestidade é brutal, o poder de observação é grande e há até
demonstrações ocasionais de humor.
Se descrevendo como uma "loira pálida que
está sempre com o mesmo casaco de inverno", a autora do diário descreve a
vida dos vizinhos no abrigo contra bombas logo abaixo do prédio de apartamentos
onde ela morava em Berlim, incluindo "um jovem em calças cinzas e óculos
de armação de chifre que, em uma observação mais atenta, é, na verdade, uma
jovem", e três irmãs mais velhas, "espremidas, juntas, como um grande
pudim".
Enquanto aguardam a chegada do Exército
Vermelho, elas fazem piada dizendo "melhor um russo em cima do que um
ianque sobre nossas cabeças". Estupro é considerado melhor do que ser
pulverizada por bombas. Mas quando os soldados chegam ao porão onde elas moram,
as mulheres imploram para a autora do diário usar suas habilidades no idioma
russo para reclamar ao comando soviético.
Ela consegue encontrar um oficial no ambiente
caótico da cidade, mas ele não toma providência alguma, apesar do decreto de
Stálin proibindo a violência contra civis.
"Vai acontecer de qualquer jeito", diz.
Ao tentar voltar para seu apartamento, a autora
do diário é estuprada no corredor e quase estrangulada; as mulheres que vivem
no porão não abrem as portas durante o estupro, apenas depois que tudo acaba.
"Minhas meias estão caídas em cima dos meus
sapatos, ainda estou segurando o que sobrou da minha cinta-liga. Começo a
gritar 'Suas porcas! Eles me estupraram duas vezes aqui e vocês me deixaram
largada como lixo!'".
Com o passar do tempo, ela percebe que precisa
achar um "lobo-chefe" que ponha fim aos estupros da
"alcateia". A relação entre agressor e vítima fica menos violenta,
mais ambígua. Ela divide a cama com um oficial mais importante, vindo de Leningrado, com quem ela conversa sobre
literatura e o sentido da vida.
"Não posso falar, de maneira nenhuma, que o
major está me estuprando. Estou fazendo isto por bacon, manteiga, açúcar,
velas, carne enlatada.... Além do mais, gosto do major e, quanto menos ele quer
de mim como homem, mais gosto dele como pessoa", escreveu.
Muitas de suas vizinhas fizeram acordos
parecidos com os conquistadores.
Este diário só foi publicado em 1959, depois da
morte da autora, com o título Uma Mulher em Berlim, e foi criticado por
"macular a honra das mulheres alemãs".
Setenta anos depois do fim da guerra, pesquisas
ainda revelam a dimensão da violência sexual sofrida pelas alemãs nas mãos não
apenas dos soviéticos, mas também de americanos, dos britânicos e dos franceses.
Em 2008, o diário da berlinense foi transformado
em um filme, chamado de Anonyma, com uma atriz alemã conhecida, Nina
Hoss. O filme teve um efeito catártico na Alemanha e estimulou muitas mulheres
a falarem sobre suas experiências.
Entre elas estava Ingeborg Bullert, hoje com 90
anos. Ela mora em Hamburgo, no norte da Alemanha. Em 1945, ela tinha 20 anos, sonhava
em ser atriz e vivia com a mãe em Berlim.
Quando o ataque soviético começou, ela se
refugiou no porão do prédio – assim como a mulher no diário.
"De repente havia tanques em nossa rua e,
em toda parte, corpos de soldados russos e alemães", disse.
Durante uma pausa nos ataques aéreos, Ingeborg
saiu do porão para pegar um pedaço de fio no apartamento, para montar um pavio
para uma lâmpada.
"De repente, havia dois soldados soviéticos
apontando revólveres para mim. Um deles me obrigou a me expor e me estuprou,
então eles trocaram de lugar e o outro me estuprou. Pensei que ia morrer, que
eles iam me matar."
Ingeborg passou décadas sem falar sobre o crime.
Os estupros afetaram mulheres em toda Berlim.
Ingeborg lembra que as mulheres entre 15 e 55 anos tinham que fazer exames para
doenças sexualmente transmissíveis.
"Você precisava do atestado médico para
conseguir os cupons de comida e lembro que todos os médicos faziam estes
atestados e que as salas de espera estavam cheias de mulheres.
Ninguém sabe exatamente quantas mulheres foram
vítimas de violência sexual de combatentes estrangeiros na Alemanha. O número
mais citado estima em 100 mil as mulheres estupradas apenas em Berlim – e em dois milhões no território
alemão.
Há documentos que expõem um alto número de
pedidos de aborto – contra a lei na época –, devido à "situação especial em Berlim – e em
dois milhões no território alemão."
É provável que nunca se saiba o número real.
Tribunais militares soviéticos e outras fontes continuam secretas.
O Parlamento russo aprovou recentemente uma lei
que afirma que qualquer pessoa que deprecie a história da Rússia na Segunda
Guerra Mundial pode ter que pagar multas ou ser preso por até cinco anos.
Uma jovem historiadora da Universidade de
Humanidades de Moscou, Vera Dubina, só descobriu sobre os estupros depois de ir
para Berlim devido a uma bolsa de estudos. Ela escreveu um estudo sobre o assunto, mas enfrentou dificuldades para
publicá-lo.
Vitaly Gelfand, filho do autor do diário,
Vladimir Gelfand, não nega que muitos soldados soviéticos demonstraram bravura
e sacrifício durante a guerra, mas, segundo ele, esta não é a única história.
Recentemente, Vitaly deu uma entrevista em uma
rádio russa que desencadeou uma onda de "trollagem" antissemita em
redes sociais. Muitos disseram que o diário é falso e que Vitaly deveria
emigrar para Israel.
Mesmo assim, Vitaly espera que o diário seja
publicado na Rússia ainda neste ano. Partes dele já foram traduzidas para o
alemão e para o sueco.
"Se as pessoas não querem saber a verdade,
estão apenas se iludindo. O mundo todo entende (que ocorreram estupros), a
Rússia entende e as pessoas por trás das novas leis sobre difamar o passado,
até elas entendem. Não podemos avançar sem olhar para o passado", disse.
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